12 novembro 2015

Moda Daspu nas passarelas brasileiras





SURGIMENTO E DIFUSÃO DA MARCA DASPU: O NOME COMO PALAVRA DE ORDEM | DE WASHINGTON DIAS LESSA E JEANINE GEAMMAL
Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos.
Washington Dias Lessa, ESDI/UERJ
Jeanine Geammal, UFC
Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos. Dadas, porém, as particularidades do surgimento e difusão da marca, optou-se por trabalhar com o conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari, buscando trazer uma inteligibilidade diferente à produção de sentido e aos relacionamentos com a mídia e com o mercado que caracterizaram o processo Daspu.
1. O surgimento da marca Daspu
A Daspu é uma marca do setor de moda e vestuários que pertence à ONG Davida. Esta ONG foi criada no Rio de Janeiro em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria. Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. Segundo a Rede, “a prostituição é uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos”1. A Davida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.



Em 2005 é lançada pela Davida a marca de uma confecção, a Daspu, que tornou-se conhecida nacionalmente a partir de uma polêmica com a Daslu, loja multimarcas de luxo sediada em São Paulo.
O nome Daspu havia sido criado como uma brincadeira em 15 de julho de 2005, durante a comemoração, na sede da Davida, dos 13 anos de fundação da ONG. Dois dias antes, Eliana Tranchesi, uma das sócias da Daslu, fora presa pela Polícia Federal acusada de sonegação de impostos, e o acontecimento havia sido amplamente coberto pela imprensa. Foi com base nessa referência que, em meio a uma conversa sobre a ideia da ONG montar uma confecção visando arrecadar fundos para o movimento, Sylvio de Oliveira sugere, com bom humor, o nome Daspu (Lenz, 2008: 34). Mas nada foi feito para implementar a ideia.
Primeiro desfile, 16 dez. 2005, na Rua Imperatriz Leopoldina, Rio de Janeiro. Fotos de Marcos Silva
Em 20 de novembro de 2005 o nome aparece publicamente pela primeira vez, mencionado em nota na coluna de Elio Gaspari, do jornal O Globo (Gaspari, 2005: 16). No entanto nem Gabriela Leite nem Flavio Lenz, assessor de imprensa da ONG, tiveram qualquer participação na publicação desta primeira notícia sobre a marca. Segundo hipótese de Lenz, a informação teria chegado ao jornalista por intermédio de alguém que, em algum bar nas imediações da sede ONG, na região da praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, teria ouvido uma conversa de seus integrantes, sempre em tom de brincadeira, sobre o assunto (Lenz, 2008: 45-46).
Logo depois desse aparecimento na mídia, a Daslu ameaça processar a Davida alegando tentativa de denegrir sua imagem, o que dá a Flavio Lenz e Gabriela Leite a oportunidade de tornar a Daspu assunto de manchete 2. E as matérias jornalísticas sobre o confronto Daslu X Daspu, evidenciam uma adesão da imprensa à iniciativa das prostitutas. Um pouco depois a Daslu retira o pedido de processo.
Após o lançamento involuntário do nome, o sucesso repentino naturalmente impõe a criação efetiva da confecção. A opção inicial foi a de divulgar a causa política da Davida através de camisetas com frases provocativas. Com a repercussão e o apoio recebido da mídia e do público a partir da polêmica com a Daslu, surge a ideia de uma estruturação empresarial mais complexa, prevendo coleções, desfiles, venda de outros tipos de roupas etc. E esta ideia era mais afinada com o discurso da Davida. Uma simples confecção estaria associada a mulheres que necessitam de ganho econômico e produzem e vendem roupas para atingir esse objetivo. Uma empresa de moda, por outro lado, deve envolver atitude e ditar comportamento, conforme categorias correntes no meio da moda. Assim como envolve expectativas de reforço financeiro, não apenas a partir de vendas estritas, mas compreende essas vendas também como resultado do desempenho da marca como imagem.
Capa do caderno Ela do jornal O Globo, publicada em 14 jan. 2006.
Durante sua trajetória visando consolidar-se no mercado da moda, a Daspu, desde seu lançamento em 2005 até 2009, apresentou sete coleções. Em ordem cronológica e associadas a seus criadores são elas: Batalha, criada pelos próprios integrantes da Davida; Daspu na Pista BR-69, concebida pela estilista Rafaela Monteiro; Puta Arte, com criação do designer Sylvio de Oliveira; Copa Sacana, por Franklin Melo; As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada, criada pelo grupo Profissionais do Ramo – Movimento Puta Life Style, formado por ex-alunos e alunos da Unversidade FUMEC Fundação Mineira de Educação e Cultura (Alzira Calhau, Ana Luisa Santos, Bruno Oliveira, Luisa Luz, Maíra Sette, Marília Tavares, Natália Assis, Rafael Boneco, Rangel Malta); e Da farofa ao caviar, concebida pelo mesmo grupo da coleção anterior.
Por sua facilidade de produção e sua adequação às necessidades de propagação do discurso da Davida, as camisetas, caracterizadas com o mesmo humor presente na criação do nome Daspu, tornam-se um produto emblemático. Trazem mensagens irônicas e bem-humoradas sobre cidadania, liberdade, sexualidade e prevenção de DST e AIDS. “Somos más, podemos ser piores”, “PU Davida”, “Moda pra mudar” e “Antes do show, afine o instrumento” – são algumas dessas frases que aparecem adornadas por imagens de preservativos, de mulheres ou casais. Concebidas dessa forma por Sylvio de Oliveira, são transformadas nos verdadeiros trajes de batalha da ONG e recebem o aval da mídia especializada, confirmado por sua aparição na seção “Fetiche” do jornal O Globo sobre a legenda: “Daspu. Aí está a camiseta mais Cult do momento” (O Globo, 2006: 1).
A camiseta Beijo aparece na edição de 14 jan. 2006 do jornal O Globo, na seção Fetiche, dentro do caderno Ela Fashion, como a mais cult do momento. Foto de Luciana Whitaker.
Apesar do amadorismo apresentado pela Davida na fase inicial do desenvolvimento de produtos, consolida-se o protagonismo dos responsáveis pela administração da marca. No que tange à formação e projeção de sua imagem, a inexperiência com o negócio moda e, por outro lado, a experiência no trato com a imprensa3 , acrescida da premência da causa política, conduziram o processo de projeção pública desse empreendimento nascente para o uso do espetacular, do que dá notícia. Mas, complementarmente, também é buscada uma estruturação mais profissional, assim como foram buscados subsídios quanto à administração e gerenciamento.
2. Em busca da especificidade Daspu: uma opção de método
A área de criação e gestão de marcas integra de modo tendencialmente diferenciado os campos do design, do branding e do marketing, e atualiza-se segundo as várias possibilidades de agenciamentos entre essas especializações, e delas com as propostas de criação de marcas que ganham existência concreta no mercado.
O conhecimento elaborado/sistematizado pela área constitui um conjunto heterogêneo que abarca de análises e sistematizações, validadas pela experiência profissional em projeto e consultoria, a elaborações mais especificamente teóricas, tanto abordando a estruturação do mercado quanto metodologias para o desenvolvimento de projetos.
Uma análise que considerasse o caso Daspu estritamente segundo essas referências, identificando/julgando protocolos e tipos de intervenções consagradas pelos padrões de excelência técnico-profissional, tenderia a não dar conta da riqueza do processo, já que o surgimento e difusão da marca Daspu apresenta algumas especificidades particulares.
Temos, inicialmente, o modo como surge a Daspu. Uma marca existe associada a produtos ou serviços, mas ganha consistência com base não apenas na qualidade desses produtos ou serviços. Na medida em que existe um espaço público de comunicação, dado tanto pela existência de diferentes configurações midiáticas (mídia impressa, a web, espaço urbano etc) quanto pelas atividades que as articulam (jornalismo, propaganda, marketing, design etc), a projeção da marca neste espaço de aparecimento possui uma autonomia em relação à sua associação direta ao produto ou serviço respectivo.





Segundo desfile da marca, na Praça Tiradentes, no Rio de janeiro, em 13 jan. 2006. Foto de Paulo Jabur
O que sobressai no surgimento da Daspu é a forma como subverte a ordem natural sugerida pelos ensinamentos do branding para a criação de uma marca de sucesso: “posicionamento, nome e identidade gráfica” (Martins, 2006, p.80-81). Seu aparecimento na mídia antecede não só a estruturação do negócio, que no momento não passava de uma conjectura, assim como qualquer estudo de posicionamento mercadológico e registro da marca. Graças à ação da imprensa ela se projeta como imagem antes de existir o empreendimento que ela deveria representar, criando condições propícias para a sua concretização.
Uma outra característica diz respeito à associação da Daspu ao universo dos movimentos sociais. Como a ideia surge de um grupo de prostitutas que trabalha pelos direitos civis de sua profissão, a marca vincula-se às searas política, social, cultural etc. E esta dimensão vai caracterizar fortemente o seu DNA.
Um outro aspecto, dado pelo contexto em que a marca é proposta, diz respeito a eventuais fragilidades dos encaminhamentos propriamente empresariais. Mas se de acordo com parâmetros técnico-profissionais estritos esta constatação até pode levar a uma avaliação negativa, por outro lado não pode ser ignorado o vigoroso senso de oportunidade da Davida visando o crescimento da Daspu: ele se manifesta tanto na busca do fortalecimento da imagem da marca que começa a se construir, quanto nas providências visando a estruturação do negócio que deve embasar a marca em termos produtivos.

Daspu na GNT
Tendo em vista a intenção de investigar o processo de surgimento e difusão da marca Daspu, deparamo-nos, assim, com as limitações que um referencial analítico técnico-profissional, da área de criação e gestão de marcas, poderia apresentar para a recuperação da especificidade Daspu como feixe de experiências sociais. Sem invalidar ou desqualificar as análises realizadas segundo este referencial, optou-se por uma “conformidade analítica”, relativizando a competência técnico-profissional como parâmetro de avaliação e buscando destacar a riqueza da experiência social presente no processo. Para isso recorreu-se ao conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, na seção Postulados da Lingüística, conceito que se refere à presença de uma pragmática na estrutura mesma da língua, possibilitando a transformação da realidade pelo discurso. Pesou nessa decisão: o fato de que o processo Daspu se construiu com base no caráter nominativo da marca; a importância assumida pelos slogans veiculados nas camisetas; e o fato da projeção pública da marca ter se dado pela ação da imprensa, na qual se destaca o discurso verbal.


Página do jornal Extra com matéria sobre a Daspu, publicada em 14 jan. 2006.
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